Reforma Ens Medio, Prof. RAFAEL


Trabalho ou emprego?
O princípio educativo na escola unitária de Gramsci e o “novo” Ensino Médio/RS.
As formulações de Gramsci sobre o trabalho como princípio educativo são releituras da resposta formulada por Karl Marx ao problema fundamental da pedagogia: como se formam os homens? Para Marx homens e mulheres se formam através do trabalho, compreendido como atividade pela qual modificam o mundo ao seu redor e produzem suas condições de existência. Esta compreensão absolutamente original sobre a constituição do ser humano dará origem a uma abordagem igualmente original da relação entre a educação e o trabalho - o paradigma do trabalho como princípio educativo. Este princípio vale para qualquer uma das formas pelas quais o trabalho pode ser realizado, no entanto, formas diferentes de realização do trabalho implicam em formas diferentes de realização de uma pedagogia do trabalho.
Na sociedade contemporânea, o padrão dominante de realização do trabalho é o emprego, a forma assumida pelo trabalho na sociedade capitalista, que resulta da apropriação privada das riquezas e dos meios de produção, e tem como corolário a formação de uma consciência ‘mutilada’, ‘fragmentada’. O emprego é o trabalho dividido que encontra sua máxima expressão na divisão entre trabalho manual e intelectual, núcleo da formação unilateral dos homens. Quando Gramsci formula sua proposta de escola unitária, nas primeiras décadas do século XX, estávamos vivendo a hegemonia de um padrão específico de subordinação do trabalho, o taylorismo que levava a um ponto extremo a divisão entre os sujeitos que pensam e os sujeitos que executam.
Acontece que no início do século XX a estrutura escolar não respondia as exigências da moderna indústria capitalista. A escola estava marcada por uma tradição humanista, comprometida com uma educação destinada a desenvolver em cada indivíduo uma cultura geral, centrada em conteúdos e na construção de uma sólida formação intelectual, enquanto que o moderno capitalismo industrial exigia um novo intelectual, ligado às atividades práticas, e ao saber diretamente ligado ao mundo da produção. Daí a “crise” escolar, que do ponto de vista da burguesia tem uma solução muito clara: abolir a escola de tipo humanista conservando delas apenas um reduzido número de exemplares destinados à formação das classes dirigentes, e difundir as escolas profissionais destinadas à formação dos operários. De um lado uma imensa rede escolar destinada a formar trabalhadores para o mercado capitalista, de outro, uma diminuta rede escolar destinada a formar as classes dominantes - é o chamado dualismo na escola moderna.
A pedagogia de Gramsci é formulada em resposta a este dualismo. Na sua visão os dois modelos escolares pecavam pela unilateralidade; enquanto a escola tradicional era uma escola do pensar abstrato, descolada do mundo real, a escola profissional era a escola de um fazer descolado da reflexão, portanto fazer de “escravos modernos” sem condições de refletir sobre a sua prática. Contra a reforma educacional do regime fascista, que pretendia colocar a escola de joelhos diante das necessidades da burguesia, Gramsci propunha uma escola unitária, assim batizada em função de duas características básicas: unitária porque conjugaria o ensino da cultura proporcionado pelas escolas tradicionais com o ensino técnico requerido pela moderna indústria, o pensar e o fazer; e unitária porque seria frequentada por jovens de todas as classes sociais, rompendo com o dualismo que direciona os jovens das classes abastadas para um tipo de escola e os jovens trabalhadores para outra, reproduzindo os primeiros enquanto camada dirigente e os segundo enquanto grupo dirigido.
Mas e hoje? Ainda tem alguma validade este debate entre escola para pensar e escola para fazer? Entre escola para dirigentes e escola para dirigidos? Infelizmente somos obrigados a constatar que sim, a separação entre escolas para as classes privilegiadas e escolas para os trabalhadores marcou as políticas educacionais do último século, e no caso específico de nosso estado emerge com toda força na proposta de Ensino Médio do governo Tarso.
Conforme os pedagogos do Piratini o “novo” Ensino Médio procura responder ao esgotamento do padrão taylorista/fordista de acumulação. Como explicam no decreto apresentado para comunidade escolar às mudanças no mundo do trabalho estão condicionadas ao advento do toyotismo como padrão de acumulação capitalista, e da microeletrônica como base material que sobre a qual se realiza o trabalho na sociedade contemporânea, e exigem um novo trabalhador, isto é, a formação de sujeitos aptos a operar as novas tecnologias associadas à indústria capitalista.
Acontece que na sociedade atual o emprego assumiu uma diversidade gigantesca de formas, sendo que a indústrias baseadas na microeletrônica representa apenas uma parte das forças produtivas da sociedade contemporânea, e esta é uma contradição fundamental do capitalismo em sua fase atual: ao mesmo tempo em que a indústria baseada na microeletrônica expressa à face hegemônica do capitalismo ela é a parte da indústria que menos gera empregos. Assim somos obrigados a constatar que no mundo contemporâneo educar para o emprego é inseparável de seu contrário, educar para o desemprego.
 Em outros termos – a máquina substitui o trabalhador, porém os poucos trabalhadores que restam precisam de uma formação diferente daquela executada nos tempos do taylorismo/fordismo, no qual se exigia muita disciplina para um trabalho monótono e repetitivo. Os trabalhadores atuais devem, assim como a tecnologia que irão operar, ser flexíveis, ter capacidade de resolver rapidamente problemas, adaptar-se facilmente às mudanças – inclusive à perda do emprego! As novas exigências que se relacionam à qualificação reduzem as dimensões cognitivas a alguns conhecimentos abstratos e colocam a ênfase sobre os valores, as atitudes e os comportamentos. O que os empresários querem são saberes aplicados, isto é, práticos. O saber fazer da escola atual substitui os conhecimentos disciplinares, agora tratados como peças de museu, verdadeiras tralhas com as quais professores antiquados enchem a cabeças das novas gerações.
Através destas exigências conseguimos compreender o significado da desvalorização dos conteúdos, a ênfase na cadeia produtiva local, e o objetivo, exposto logo na introdução da proposta do governo, de colocar em prática “um projeto educacional que atenda às necessidades do mercado, mas que tenha na sua centralidade, o indivíduo” (SEDUC, 2011, p.8). Este discurso soaria muito estranho nos ouvidos de Gramsci porque sua concepção da relação entre trabalho e educação não aponta para subordinação da escola ao imperativo de empregabilidade, mas ao contrário, ele entende a educação como espaço de formação de sujeito críticos em relação às formas historicamente existentes de trabalho, propõe uma educação que desperte o estudante para as infinitas possibilidades de organização do trabalho, para que este possa reorganizar o mundo e não apenas se adaptar a ele. Mais do que diferenças, temos uma contradição entre a proposta gramsciniana de escola unitária, onde o trabalho é o princípio educativo, e o Ensino Médio Politécnico imposto às escolas da rede estadual/RS, onde o (des) emprego é o princípio educativo.
 Em primeiro lugar os objetivos aos quais a educação se subordina são opostos em cada uma das propostas pedagógicas: para Gramsci trata-se de uma escola que ajuda a superar a divisão de classes, que impulsiona uma consciência crítica sobre a forma historicamente existente do trabalho, já na proposta do governo/RS o objetivo da educação é formar o empregado  que o ramo hegemônico da indústria capitalista exige, fazendo uma apologia do emprego em sua forma atual e procurando adaptar os jovens tanto ao desemprego quanto às jornadas extensas de trabalho.
Em segundo lugar, enquanto a escola unitária é uma proposta que visa romper o dualismo entre aqueles que são educados para trabalhar e aqueles que são educados para governar, o Ensino Médio/RS reforça este dualismo na medida em que diferencia o currículo que será oferecido aos filhos da classe trabalhadora, que frequentam a escola pública, e os jovens das classes mais abastadas, que frequentam as escolas privadas. Neste caso trata-se de uma proposta que visa adaptar o conjunto da rede pública estadual ao imperativo da escola sob a tutela neoliberal; formar um indivíduo apto para ocupar papéis no mercado de trabalho, mas igualmente apto para, resignadamente, adaptar-se ao desemprego estrutural que a escola não tem poder nenhum para reverter. 
 Em um momento histórico no qual o desemprego assola as economias industriais que operam sob o império da microeletrônica e do padrão toyotista é necessário reforçar a distinção entre trabalho e emprego. No trabalho livre, homens e mulheres submetem seu labor às suas próprias necessidades; no emprego (trabalho alienado), homens e mulheres tem sua atividade laboral submetida aos interesses de outros homens, daqueles que possuem os instrumentos de produção. No trabalho como princípio educativo, os conhecimentos teóricos são associados às atividades práticas, porque os mesmos sujeitos que planejam precisam também executar; no emprego como princípio educativo o pensar é descolado do fazer, e o trabalhador só tem acesso àqueles conhecimentos teóricos imediatamente utilizáveis no processo de produção, pois cabe ao empregador planejar a tarefa que seus empregados devem executar. Na escola unitária de Gramsci o trabalho é o princípio educativo que forja a utopia de uma sociedade livre e igualitária; no Ensino Médio Politécnico de Tarso, o (des) emprego é o princípio educativo que forja o compromisso entre o governo e os empresários organizados na agenda 2020.    

Professor Rafael Oliveira

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