Trabalho ou emprego?
O princípio educativo na escola unitária de
Gramsci e o “novo” Ensino Médio/RS.
As formulações de
Gramsci sobre o trabalho como princípio educativo são releituras da resposta
formulada por Karl Marx ao problema fundamental da pedagogia: como se formam os
homens? Para Marx homens e mulheres se formam através do trabalho, compreendido
como atividade pela qual modificam o mundo ao seu redor e produzem suas
condições de existência. Esta compreensão absolutamente original sobre a
constituição do ser humano dará origem a uma abordagem igualmente original da
relação entre a educação e o trabalho - o paradigma do trabalho como princípio
educativo. Este princípio vale para qualquer uma das formas pelas quais o
trabalho pode ser realizado, no entanto, formas diferentes de realização do
trabalho implicam em formas diferentes de realização de uma pedagogia do trabalho.
Na sociedade
contemporânea, o padrão dominante de realização do trabalho é o emprego, a forma assumida pelo trabalho
na sociedade capitalista, que resulta da apropriação privada das riquezas e dos
meios de produção, e tem como corolário a formação de uma consciência
‘mutilada’, ‘fragmentada’. O emprego
é o trabalho dividido que encontra sua máxima expressão na divisão entre
trabalho manual e intelectual, núcleo da formação unilateral dos homens. Quando
Gramsci formula sua proposta de escola unitária, nas primeiras décadas do
século XX, estávamos vivendo a hegemonia de um padrão específico de
subordinação do trabalho, o taylorismo que levava a um ponto extremo a divisão
entre os sujeitos que pensam e os sujeitos que executam.
Acontece que no início
do século XX a estrutura escolar não respondia as exigências da moderna
indústria capitalista. A escola estava marcada por uma tradição humanista,
comprometida com uma educação destinada a desenvolver em cada indivíduo uma
cultura geral, centrada em conteúdos e na construção de uma sólida formação
intelectual, enquanto que o moderno capitalismo industrial exigia um novo
intelectual, ligado às atividades práticas, e ao saber diretamente ligado ao
mundo da produção. Daí a “crise” escolar, que do ponto de vista da burguesia
tem uma solução muito clara: abolir a escola de tipo humanista conservando
delas apenas um reduzido número de exemplares destinados à formação das classes
dirigentes, e difundir as escolas profissionais destinadas à formação dos
operários. De um lado uma imensa rede escolar destinada a formar trabalhadores
para o mercado capitalista, de outro, uma diminuta rede escolar destinada a
formar as classes dominantes - é o chamado dualismo na escola moderna.
A
pedagogia de Gramsci é formulada em resposta a este dualismo. Na sua visão os
dois modelos escolares pecavam pela unilateralidade; enquanto a escola
tradicional era uma escola do pensar abstrato, descolada do mundo real, a
escola profissional era a escola de um fazer descolado da reflexão, portanto
fazer de “escravos modernos” sem condições de refletir sobre a sua prática. Contra
a reforma educacional do regime fascista, que pretendia colocar a escola de
joelhos diante das necessidades da burguesia, Gramsci propunha uma escola
unitária, assim batizada em função de duas características
básicas: unitária porque conjugaria o
ensino da cultura proporcionado pelas escolas tradicionais com o ensino técnico
requerido pela moderna indústria, o pensar e o fazer; e unitária porque seria frequentada por jovens de todas as
classes sociais, rompendo com o dualismo que direciona os jovens das classes
abastadas para um tipo de escola e os jovens trabalhadores para outra,
reproduzindo os primeiros enquanto camada dirigente e os segundo enquanto grupo
dirigido.
Mas
e hoje? Ainda tem alguma validade este debate entre escola para pensar e escola
para fazer? Entre escola para dirigentes e escola para dirigidos? Infelizmente
somos obrigados a constatar que sim, a separação entre escolas para as classes
privilegiadas e escolas para os trabalhadores marcou as políticas educacionais
do último século, e no caso específico de nosso estado emerge com toda força na
proposta de Ensino Médio do governo Tarso.
Conforme
os pedagogos do Piratini o “novo” Ensino Médio procura responder ao esgotamento
do padrão taylorista/fordista de acumulação. Como explicam no decreto
apresentado para comunidade escolar às mudanças no mundo do trabalho estão
condicionadas ao advento do toyotismo como padrão de acumulação capitalista, e
da microeletrônica como base material
que sobre a qual se realiza o trabalho na sociedade contemporânea, e exigem um
novo trabalhador, isto é, a formação de sujeitos aptos a operar as novas
tecnologias associadas à indústria capitalista.
Acontece
que na sociedade atual o emprego assumiu uma diversidade gigantesca de formas, sendo
que a indústrias baseadas na microeletrônica representa apenas uma parte das
forças produtivas da sociedade contemporânea, e esta é uma contradição
fundamental do capitalismo em sua fase atual: ao mesmo tempo em que a indústria
baseada na microeletrônica expressa à face hegemônica do capitalismo ela é a
parte da indústria que menos gera empregos. Assim somos obrigados a constatar
que no mundo contemporâneo educar para o emprego é inseparável de seu
contrário, educar para o desemprego.
Em outros termos – a máquina substitui o
trabalhador, porém os poucos trabalhadores que restam precisam de uma formação
diferente daquela executada nos tempos do taylorismo/fordismo, no qual se
exigia muita disciplina para um trabalho monótono e repetitivo. Os
trabalhadores atuais devem, assim como a tecnologia que irão operar, ser
flexíveis, ter capacidade de resolver rapidamente problemas, adaptar-se
facilmente às mudanças – inclusive à perda do emprego! As novas exigências que
se relacionam à qualificação reduzem as dimensões cognitivas a alguns
conhecimentos abstratos e colocam a ênfase sobre os valores, as atitudes e os
comportamentos. O que os empresários querem são saberes aplicados, isto é,
práticos. O saber fazer da escola atual substitui os conhecimentos
disciplinares, agora tratados como peças de museu, verdadeiras tralhas com as
quais professores antiquados enchem a cabeças das novas gerações.
Através
destas exigências conseguimos compreender o significado da desvalorização dos
conteúdos, a ênfase na cadeia produtiva local, e o objetivo, exposto logo na
introdução da proposta do governo, de colocar em prática “um projeto
educacional que atenda às necessidades do mercado, mas que tenha na sua
centralidade, o indivíduo” (SEDUC, 2011, p.8). Este discurso soaria muito
estranho nos ouvidos de Gramsci porque sua concepção da relação entre trabalho e
educação não aponta para subordinação da escola ao imperativo de
empregabilidade, mas ao contrário, ele entende a educação como espaço de
formação de sujeito críticos em relação às formas historicamente existentes de
trabalho, propõe uma educação que desperte o estudante para as infinitas
possibilidades de organização do trabalho, para que este possa reorganizar o
mundo e não apenas se adaptar a ele. Mais do que diferenças, temos uma
contradição entre a proposta gramsciniana de escola unitária, onde o trabalho é
o princípio educativo, e o Ensino Médio Politécnico imposto às escolas da rede
estadual/RS, onde o (des) emprego é o princípio educativo.
Em primeiro lugar os objetivos aos quais a
educação se subordina são opostos em cada uma das propostas pedagógicas: para
Gramsci trata-se de uma escola que ajuda a superar a divisão de classes, que
impulsiona uma consciência crítica sobre a forma historicamente existente do
trabalho, já na proposta do governo/RS o objetivo da educação é formar o
empregado que o ramo hegemônico da
indústria capitalista exige, fazendo uma apologia do emprego em sua forma atual
e procurando adaptar os jovens tanto ao desemprego quanto às jornadas extensas
de trabalho.
Em
segundo lugar, enquanto a escola unitária é uma proposta que visa romper o
dualismo entre aqueles que são educados para trabalhar e aqueles que são
educados para governar, o Ensino Médio/RS reforça este dualismo na medida em
que diferencia o currículo que será oferecido aos filhos da classe
trabalhadora, que frequentam a escola pública, e os jovens das classes mais
abastadas, que frequentam as escolas privadas. Neste caso trata-se de uma
proposta que visa adaptar o conjunto da rede pública estadual ao imperativo da
escola sob a tutela neoliberal; formar um indivíduo apto para ocupar papéis no
mercado de trabalho, mas igualmente apto para, resignadamente, adaptar-se ao
desemprego estrutural que a escola não tem poder nenhum para reverter.
Em um momento histórico no qual o desemprego
assola as economias industriais que operam sob o império da microeletrônica e
do padrão toyotista é necessário reforçar a distinção entre trabalho e emprego. No
trabalho livre, homens e mulheres submetem seu labor às suas próprias
necessidades; no emprego (trabalho alienado), homens e mulheres tem sua
atividade laboral submetida aos interesses de outros homens, daqueles que
possuem os instrumentos de produção. No trabalho como princípio educativo, os
conhecimentos teóricos são associados às atividades práticas, porque os mesmos
sujeitos que planejam precisam também executar; no emprego como princípio
educativo o pensar é descolado do fazer, e o trabalhador só tem acesso àqueles
conhecimentos teóricos imediatamente utilizáveis no processo de produção, pois
cabe ao empregador planejar a tarefa que seus empregados devem executar. Na
escola unitária de Gramsci o trabalho é o princípio educativo que forja a
utopia de uma sociedade livre e igualitária; no Ensino Médio Politécnico de
Tarso, o (des) emprego é o princípio educativo que forja o compromisso entre o
governo e os empresários organizados na agenda 2020.
Professor Rafael Oliveira
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